domingo, 3 de janeiro de 2010

Fuja



Fuja, meu caro
Por Vicente Cascione

Os pássaros despontaram com o sol, de manhã bem cedo, desatentos e confiantes, pela certeza de eu estar, ainda, adormecido.
Do lado de fora, a vidraça reflete as ramagens onde eles brincam. Do lado de dentro, estou eu, cativo, a vigiar, despercebido, a intimidade dos passarinhos.
Mais tarde será impossível encontrá-los quando a rua estiver povoada de homens e máquinas.
Nem adivinho para onde vão nem o que fazem essas aves ágeis e ruidosas, cujas vidas parecem durar apenas o breve tempo de uma antemanhã.
Entre tantas, prefiro este´sabiá. Suponho que ele percebe minha presença, ali, na espreita, e não me teme. Parece ter, por mim, uma vaga estima, quase uma velha amizade. Até imagino que ele se exibe, no arvoredo, diante da platéia, que sou eu.
Mas quando decido abrir a porta de vidro para saudar a passarinhada em bando, vejo-me travestido num tosco espantalho de carne e osso. E, então, as avezinhas revoam, ramagens ficam desertas e, de repente, tudo é silêncio.
Minhas tentativas de aproximação foram inúteis.
Os sábios pássaros não confiam nos homens. A natureza não erra.
Mesmo se eu lhes pudesse dizer que estamos em dezembro, eles duvidariam de meu gesto de paz.
Passarinhos desconhecem calendários. Somente obedecem ao tempo das estações, valem-se do sol e das chuvas. Inauguram manhãs e adormecem quando morre a tarde. Amam-se no aconchego dos ramos, depois tecem ninhos, cantam, voam e morrem, em algum lugar, sem alarde.
Há quem acredite no advento da anunciada paz na terra entre os homens de boa vontade, unicamente pelo cumprimento dos protocolos do Natal e do Ano-Novo.
Existem, é verdade, boas almas a semear sinceros votos de um mundo melhor, a despeito de tudo, apesar de tantos...
Estes tantos vivem ungidos de suas alegrias alcoólicas ou efêmeras como suas vidas, saúdam-se uns aos outros, fazem onda, erguem árvores coloridas, inundam a noite com luzes de artifício e explosão de morteiros, trocam dádivas, rezam nos minutos regressivos e bebem garrafas disponíveis no altar de Baco, em nome de outros deuses levianos, desertores de seus plantões.
Estes tantos incorporam os eufóricos espiritos de arribação que, nos finais de cada ano, chegam em bando para cumprir a liturgia dos comércios, entoar cânticos de despedida ao ano velho e de recepção a um novo tempo dado à luz pelo parto de esperanças forçadas, às vésperas de todos os janeiros, quando recomeça, e salvem-se quem puder.
É isso. Somente quando a maioria dos homens tiver, mesmo, boa vontade, a paz não será mera convenção de verão, nem um sentimento apenas vigente em datas designadas pelos inúteis calendários, diante dos quais, o tempo ri.
Quando os homens forem dotados, mesmo, de boa vontade, eles poderão abrir suas portas de vidro, na antemanhã, e os passáros pousarão, sem medo, na palma de suas mãos estendidas. Mãos limpas e justas, à semelhança de seus doces corações humanos.
Agora, fuja, meu caro sabiá. Quando eu abrir a porta, fuja, ainda que eu lhe jure ser, este, um tempo de paz por estarmos sublimados pela magia dos derradeiros dias do mês de dezembro deste ano de graça.... apesar de o pessimismo das Retrospectivas das TVs sempre reprisarem sua ficção anual repleta de tanta (des)graça.
Feliz 2010 para todos.
De Verdade.

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