quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O menino sem Dores !

Numa família paupérrima do interior de Pernambuco, uma circunstância insólita : o filho mais novo, o menino Pedro, de 12 anos, sofre de um fenômeno físico : não sente dor de qualquer espécie, mesmo que coloque as mãos no fogo, que se corte com uma faca afiada ou caia de “ponta cabeça” (como disse a mãe) de uma altura de três metros. O que tem provocado alguns dissabores. Por não sentir dor, o garoto abusa e vive se ferindo, machuca-se com mais facilidade que os irmãos e está constantemente estropiado.
Apesar de tudo, a família atribui a Deus tal fato e o considera um enviado do Senhor, a ponto de recusar o laudo médico feito no Recife por uma junta médica, que afirma se tratar de uma reação raríssima chamada de “indiferença Congênita à Dor”, que pode levar uma pessoa à neurose absoluta, a um processo depressivo grave em nome da não-reação natural do processo sensório-motor a tudo aquilo que fere e sensibiliza, já que o tecido e a emoção foram atingidos, ainda que não haja manifestação dolorosa. Complicado, não ?

Questiono se o garoto não sente também as dores da alma, o medo, a rejeição, a decepção e a perda. Se essa indiferença congênita atinge também a linha dos afetos e elimina a dor de cotovelo, a fossa, o melancólico dos desencontros na sensibilidade, o baixo astral do egoísmo alheio e a solidão de uma atitute incompreendida. E questiono se seria bom vir ao mundo com essa indiferença que não é imunidade, desde que a dor existe embora não consiga ser sentida.
Mesmo não concordando com os estóicos de que a dor e o sofrimento fazem crescer por considerá-la acachapante, individualista, mesquinha, levando o que sofre a um comportamento aparteado do mundo, flagelador e aceitando apenas que uns poucos inteligentes acabem por tirar algumas lições de vida, no pós-sofrer – quantos indivíduos que vocês conhecem apanham as mais fortes bordoadas e continuam exatamente iguais ? – não gostaria de ser portadora dessa anomalia.
Da mesma forma que o menino Pedro, machucamo-nos muito mais quando não temos a dimensão das conseqüências e é importante ter a noção da espécie humana através de suas atitudes diretamente dirigidas. O alheamento que poderia evitar o lacinante, tiraria a consciência do que a figura humana pode ser numa existência individual, sua importância e valor. Como o outro nos magoa ou encanta e satisfaz.
Temo que a diferença congênita à dor moral pudesse também eliminar o prazer, a grandeza de sentir apoio, a magnificência de perceber o carinho e o delicioso estado de espírito do riso feliz, traduzindo o ato de amor. Como dizia o poeta inglês William Blacke, “alegria e dor tecem trama fina”.
Mas deve ter muita gente invejando o garoto. Aqueles que passam a vida e gastam o tempo lutando contra um possível sofrimento ou
frustração, mesmo que isso custe não amar, não se entregar, viver fugindo dos apegos, desligar-se das referências afetivas
Que sempre nos venha a dor e o pranto se prenunciarem o riso e a alegria. Caso haja necessidade de um oposto na complexidade dos contrários. O que leva a harmonia ao abençoado equilíbrio. Mesmo quando se cai de ponta cabeça como o menino pernambucano.

(Luiz Alca de Sant’Anna)

Um comentário:

  1. Mariza

    Vc questionou se esse menino tambem nao sente dor de alma etc. Nao vejo razao por que ele nao sentiria essa, ja que, embora usemos a mesma palavra (talvez por conveniencia ou falta de uma mais precisa), esse tipo de dor é bem diferente da dor fisica. Ela tem outra causa e origem, outro mecanismo e outro caminho de propagaçao. O fato que usamos a mesma palavra na linguagem do dia-a-dia nao significa que em termos fisiologicos é o mesmo fenomeno.

    Vc disse tambem que mesmo se esse garoto nao sente a dor, a dor existe. Nao concordo. A dor so existe quando se sente a dor. Se nao a sente, por definiçao nao existe. O que existe, com ou sem dor, é o ferimento, a lesao, o dano. Mas ja que o corpo dele nao tem a reaçao de dor ao ferimento, a dor nao existe pra ele. Tem que distinguir entre a dor e a causa dela.

    E ja imagino uma vantagem que tem esse Pedro… a visita ao dentista nao está cheia desse medo paralisante de sentir dor durante o tratamento. Nesse momento acho que ate vc daria tudo para ter a garantia que nao iria sentir nenhuma dor!

    Um abraço

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